segunda-feira, janeiro 22, 2024


Detalhes escondidos em pinturas

O que grandes pinturas e esculturas têm em comum?

Os Mármores de Elgin ou Mármores do Partenon Grécia

 Cada uma guarda um detalhe que muitas vezes passa despercebido, mas que traz à tona seu significado profundo. Escreve Kelly Grovier para a BBC.

A coluna de Tarjano por Apolodoro de Damasco 114

 Essa, pelo menos, é a premissa do meu livro A New Way of Seeing: The History of Art in 57 Works, um estudo que convida os leitores a se reconectar com obras que, de tão familiares, não são mais observadas de forma detida.

Self-Portrait with Thorn Necklace and Hummingbird 1940

 

Tomando como ponto de partida as imagens mais reverenciadas de toda a história da humanidade (da Coluna de Trajano ao quadro American Gothic, dos Mármores de Elgin à Dança, de Matisse), fui buscar o que torna a arte grandiosa — porque algumas obras continuam reverberando no imaginário popular século após século, enquanto a vasta maioria das criações artísticas escapa da nossa consciência quase tão rápido quanto interagimos com elas.

Mona Lisa de Leonardo da Vince 1503

 Analisando em profundidade essas obras, fiquei surpreso ao descobrir que cada uma contém um toque de estranheza que, uma vez detectado, desbloqueia novas leituras emocionantes e muda para sempre a maneira como interagimos com essas obras-primas.

American Gothic de Grant Wood 1930

  Conforme esses detalhes notáveis ​​começaram a se revelar, de um dedo fantasmagórico remexendo na mão direita da Mona Lisa a um símbolo de força do tarô escondido à vista de todos em um dos autorretratos mais misteriosos de Frida Kahlo, me lembrei de um comentário de Charles Baudelaire. "A beleza", escreveu o poeta e crítico francês em 1859, "sempre contém um toque de estranheza, de uma simples, não premeditada e inconsciente estranheza".

Dance II de Henri Matisse 1910

Tapeçaria de Bayeux c.1077 Artesãs sem identidade

 As mulheres esquecidas que, um milênio atrás, bordaram os 70 metros de tecido sobre os quais a Tapeçaria de Bayeux narra os acontecimentos que levaram à Conquista Normanda, não eram apenas costureiras primorosas, mas contadoras de histórias excepcionais.

Tapeçaria de Bayeux c.1077 Artesãs sem identidade

  A flecha que perfura o olho do Rei Harold em uma cena apoteótica perto do final do épico visual é um dispositivo metanarrativo que funciona como a própria agulha com a qual a história foi intrincadamente tecida.

Tapeçaria de Bayeux c.1077 Artesãs sem identidade, detalhe de uma das várias tapeçarias que formam o conjunto

  Ao agarrar a flecha, o ferido Harold confunde sua própria identidade com a do artista e do observador, cujo próprio olho é levado adiante, cena após cena. Com um único ponto, nosso olho, o de Harold e o da agulha da costureira se transformam em um só.

O Nascimento da Vênus de Sandro Botticelli c.1482-1485

  Uma espiral de cachos dourados suspensa no ombro direito da deusa na obra-prima renascentista de Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, funciona como um motor em miniatura no eixo vertical da pintura, impulsionando-a para nossa imaginação.

O Nascimento da Vênus de Sandro Botticelli c.1482-1485

  Uma curva logarítmica perfeita, não é um ornamento incidental ou acidental do pincel. O mesmo vetor giratório, que pode ser observado no mergulho das aves de rapina e na espiral das conchas de nautilus, hipnotiza pensadores desde a antiguidade.

O Nascimento da Vênus de Sandro Botticelli, detalhe com o cacho em spiral
  No século 17, um matemático suíço, Jacob Bernoulli, acabaria batizando essa forma de curl spira mirabilis, ou "espiral maravilhosa". Na pintura de Botticelli — uma obra que celebra a elegância atemporal — a espiral impenetrável sussurra no ouvido direito de Vênus, revelando a ela os segredos da verdade e da beleza.

O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch c.1505-1510

O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch c.1505-1510, o tríptico fechado que servia de oratório portátil e com incríveis 220 cm × 389 cm em óleo sobre madeira, dobradiça, ouro e cola.
 
Que um ovo está escondido à vista de todos no centro do festival de peripécias carnais de Hieronymus Bosch (mais precisamente, equilibrado no topo da cabeça de um cavaleiro), é de conhecimento de críticos e fãs da pintura. Mas como esse detalhe delicado desbloqueia o significado mais verdadeiro da obra?

O tríptico aberto com o céu, o purgatório e o inferno, que medo e no centro do painel central está o ovo simbolizando a vida em muitas comunidades 

  Se fecharmos os painéis laterais do tríptico para revelar o revestimento da obra e o ovóide fantasmagórico de um mundo frágil que Bosch retratou na parte externa — uma orbe translúcida flutuando no éter —, descobrimos que ele concebeu sua pintura como uma espécie de ovo para ser quebrado e permanecer intacto indefinidamente, cada vez que interagimos com a complexidade da obra.

 E aqui no centro do painel central está o ovo simbolizando a vida em muitas comunidades.

 Ao abrir e fechar a pintura de Bosch, estabelecemos alternadamente um mundo novo em movimento ou voltamos no tempo para antes da criação, antes da nossa inocência ser perdida.

Moça Com Brinco de Pérola de Johannes Vermeer c.1665 

 A moça que usa um brinco de pérola reluzente no famoso quadro de Vermeer se volta perpetuamente em nossa direção ou para longe de nós? Pense bem.

Moça Com Brinco de Pérola de Johannes Vermeer c.1665
 O adereço em torno do qual gira o mistério da pintura é apenas um pigmento da sua imaginação. Com um movimento de pulso e duas pinceladas habilidosas de tinta branca, o artista enganou o córtex visual primário do lobo occipital de nossos cérebros.

 Aperte os olhos com a força que quiser, não há nenhum gancho ligando o ornamento à orelha. Sua própria esfericidade é uma farsa.

Vermeer elaborou esse trabalho, usando diferentes camadas. O artista modificou a composição da pintura, deslocando a posição da orelha, a parte superior do turbante e a nuca, e usou matérias-primas de todo mundo. Exames mais específicos revelaram a presença de pequenos cílios ao redor dos olhos da jovem, imperceptíveis a olho nu, também estabeleceram a existência de uma cortina verde no fundo aparentemente vazio da pintura, uma espécie de "tecido dobrado" que finalmente desapareceu ao longo dos séculos.
 Desejamos que o brinco estivesse suspenso na ausência de gravidade a partir dos mais insignificantes apóstrofos brancos. A joia preciosa de Vermeer é uma ilusão de óptica opulenta, que se reflete em nossa própria presença ilusória no mundo.

A falta do efeito é vista aqui
Chuva, Vapor e Velocidade ou A Grande Estrada de Ferro do Oeste de JMW Turner de 1844

 Não é nenhum segredo que Turner escondeu uma lebre correndo no trilho obscuro da locomotiva que se aproxima. O próprio artista chamou atenção para este fato a um menino que visitou a Royal Academy no dia do envernizamento da obra, quando o quadro estava prestes a ser exposto.

 Mas como esse pequeno detalhe revela o significado da vasta reflexão de Turner sobre a tecnologia invasiva? Por que ele se sentiu obrigado a apontar isso?

Chuva, Vapor e Velocidade de JMW Turner de 1844

 Desde a antiguidade, a lebre simboliza o renascimento e a esperança. Os visitantes que viram a pintura quando a mesma foi exibida pela primeira vez em 1844, ainda estavam sob impacto emocional do horror de uma tragédia ocorrida na véspera de Natal dois anos e meio antes, quando um trem descarrilou a 16 quilômetros da ponte retratada na pintura — um acidente que matou nove passageiros da terceira classe e mutilou outros 16.

A cabeça do coelho e seu grande olho

 Ao ser diminuto no símbolo da lebre, um artista famoso por ser grandioso transforma sua pintura em uma pungente homenagem e reflexão sobre a fragilidade da vida.

 Um banho em Asnières de Georges Seurat de 1884

 A grande pintura que retrata parisienses desfrutando preguiçosamente a hora de almoço às margens do rio Sena, a primeira obra exibida por Seurat, foi terminada inicialmente em 1884. Ela foi retocada pelo artista anos mais tarde, depois que ele começou a aperfeiçoar sua técnica de aplicação de pequenos pontos distintos que são coerentes ao olhar do observador quando vistos à distância.

Um banho em Asnières de Georges Seurat de 1884
  A teoria da cor subjacente ao estilo pontilhista mais maduro de Seurat deve sua origem, em parte, às ideias de um químico francês, Michel Eugène Chevreul, que explicou como a justaposição de matizes pode gerar uma persistência de tons em nossa imaginação.

  Na distância nebulosa da pintura de Seurat, uma fileira de chaminés se ergue de uma fábrica que produzia velas, de acordo com a inovação industrial pela qual Chevreul também era responsável.

 Estas chaminés, que mais parecem pincéis pintando a obra à existência, são um tributo ao pensador, sem o qual a visão resplandecente de Seurat não teria sido possível.

As chaminés representadas ao fundo

O Grito de Edvard Munch de 1893

 Há muito se supõe que a figura de O Grito, de Edvard Munch — um arquétipo de angústia que ainda povoa o imaginário popular mais de um século depois de ter sido criado — deve sobretudo a expressão de pavor congelada no rosto a uma múmia peruana que o artista encontrou na Exposição Universal de 1889 em Paris.

O Grito de Edvard Munch de 1893 muitas pinturas munch foram feitas com a técnica de têmpera com ovo inclusive este aqui, que possui hoje quatro versões conhecidas

 Mas Munch era um artista mais preocupado com o futuro do que com o passado, e especialmente ansioso em relação ao ritmo da tecnologia.

 Certamente, ele deve ter ficado ainda mais profundamente impressionado com o espetáculo de tirar o fôlego de uma enorme lâmpada incandescente repleta de 20 mil lâmpadas menores que se elevava em um pedestal sobre o pavilhão na mesma exposição.

Thomas Edison foi um dos mais prolíficos inventores de seu tempo, em 1879, Edison criou a lâmpada incandescente, seu primeiro invento comercialmente viável.

  Um tributo às ideias de Thomas Edison, a escultura se erguia como um deus cristalino anunciando uma nova idolatria, acionando um interruptor na mente de Munch. Os contornos do rosto de O Grito refletem com extraordinária precisão a mandíbula caída e o crânio bulboso do assustador totem elétrico de Edison.

O beijo de Gustav Klimt 1907

 Sem dúvida o amor e a paixão estão no extremo oposto dos longos jalecos brancos e lâminas para microscópios de testes científicos. Não de acordo com a pintura O Beijo, de Gustav Klimt.

O beijo de Gustav Klimt 1907

 No ano em que pintou sua obra, Viena efervescia com a linguagem das plaquetas e células sanguíneas, especialmente nos arredores da Universidade de Viena, onde o próprio Klimt fora convidado, anos antes, a criar pinturas baseadas em temas médicos.

 Karl Landsteiner, um imunologista pioneiro da universidade (o primeiro cientista a distinguir os grupos sanguíneos) estava trabalhando duro para fazer as transfusões de sangue serem bem-sucedidas.

 Olhe mais de perto a curiosa estampa do vestido da mulher na pintura de Klimt e, de repente, você constata o que são: placas de Petri pulsando com células, como se o artista nos tivesse oferecido uma tomografia da sua alma. O Beijo é a biópsia luminosa do amor eterno de Klimt.

Lâminas de microscópio, pequenas placas de vidro que contém o material a ser observado, os vidros são sobrepostos e o material fica no centro comprimido pelas lâminas. 


Por Kelly Grovier para BBC jan 2021

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